Algazarra do bem, por Zuenir Ventura
Zuenir Ventura, O Globo
Além dos milagres já anunciados — fazer os brasileiros se apaixonarem por um argentino e, mais, um argentino humilde, alguém conhece outro? — o Papa Francisco está promovendo um espetáculo ao qual nem as nossas mais famosas festas pagãs, o carnaval e o futebol, nem o réveillon, que é meio profano, meio religioso, se equiparam em fervor e alegria natural (sem o estímulo etílico).
Levar 500 mil pessoas às areias encharcadas de Copacabana num dia e, no seguinte, o dobro disso para assistirem a demoradas cerimônias religiosas debaixo de uma chuva cortante e sob um frio desconhecido, que parece ter sido trazido na mochila dos peregrinos noruegueses, é um feito inédito.
Ele atribuiu à força da fé essa afluência de multidões molhadas para vê-lo, ouvi-lo e, quando possível, tocá-lo. De fato, tirar as pessoas de casa ou dos alojamentos para enfrentar um trânsito caótico que não poupou nem o Sumo Pontífice na chegada, suportar pane do metrô e falta de ônibus, entrar em filas intermináveis para obter senhas, acordar de madrugada, aguentar enfim estoicamente a indesculpável desorganização de um evento previsto há meses, só mesmo por milagre. Bote fé nisso!
“Sempre ouvi dizer que os cariocas não gostam do frio e da chuva, mas vocês estão mostrando que a fé é mais forte que o frio e a chuva”, ele discursou ontem na comunidade de Manguinhos.
Por modéstia, não acrescentou que, tanto quanto a fé, há o seu carisma e incrível capacidade de mobilizar as massas, empolgá-las e seduzi-las com palavras e gestos, graça e humor. E a resistência física?
Enquanto o acompanhava pela TV na Missa da Acolhida em Copacabana, que demorou até a noite, tive que levantar para ir ao banheiro umas duas vezes, e ele lá, após um dia exaustivo, ouvindo e falando, falando e ouvindo durante horas, sem tomar um copo d’água e, pior, sem poder dizer: “Um instantinho que vou lá dentro e volto já.” Representante de Deus na Terra, ele com certeza não está submetido às necessidades terrenas de reles pecadores como eu.
Outro destaque. Nesse espetáculo em que Francisco é o protagonista, há um ator ao mesmo tempo personagem e plateia: os peregrinos daqui e de fora. Temia-se que essa invasão de forasteiros da Jornada Mundial da Juventude tumultuasse o Rio, o que levou muita gente a sair da cidade. Eu mesmo pensei em fazer isso. Pois esses jovens barulhentos e vibrantes, cantando e pulando pelas ruas, em vez de tumulto, promoveram uma pacífica algazarra do bem.
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